É preciso respeitar os documentos. Mas os documentos não falam por si mesmos: aguardam ser interpretados. E nunca é demais lembrar, como bem apontou Marina Waisman, que “se bem os objetos da reflexão provém da realidade, a problemática que comportam não se revela neles de um modo direto e evidente; será a reflexão que há de descobrir ou revelar problemas e questões que subjazem na realidade fática, pois o ato de formular questões ou perguntas se apoia em conceitos, em ideias; com base neles é que se produzem as descobertas; e logo será a práxis que responderá – positiva ou negativamente – às perguntas ou exigências formuladas pela reflexão”.[1]
Os documentos, incluindo-se as obras de arquitetura – que são também documentos da maior importância e densidade para nosso campo de estudos – aguardam pacientemente por nossas reflexões. Mas jamais serão esgotados por elas: a qualquer momento um outro olhar lhes trará nova vida. Os mesmos documentos, iluminados por outras perguntas, sugerirão precisões e revisões, de singelas a revolucionárias. Mas para que isso ocorra é preciso se permitir fazer novas perguntas. Sem a dúvida sistemática não há ampliação ou revisão de campo; mas ela só pode consistentemente ocorrer se aceitarmos que nem tudo está claro, dito e definido. E sem nos darmos ao trabalho de voltar às origens – à documentação – e novamente interrogá-la.
Parece haver uma ideia subjacente e prevalente permeando quase todas as historiografias canônicas da arquitetura moderna, em especial daquelas que tratam de outras modernidades não europeias. Trata-se de uma ideia cuja presença é sutil e difícil de apontar, já que subjaz na base de muitas assunções, sendo dada por sentada, e não sendo muito discutida por se acreditar evidente. Trata-se da noção de “transposição cultural” - de ideias, modelos, formas, etc.. No caso dos estudos sobre as nossas arquiteturas ocorrendo sempre e necessariamente segundo um eixo imaginário, originado no norte e repercutindo no sul. Aceita tal ideia, de imediato se estabelece um corolário implícito: a noção de que os fatos, obras, discursos, tendências e debates arquitetônicos necessariamente ocorrem primeiro lá e depois aqui. A partir desse corolário, e para confirmá-lo, se constroem explicações - reais ou supostas - de como e porque isso é assim; e finalmente, se validam essas explicações adotando-se a crença de que elas mesmas seriam a causa eficiente e necessária para que as coisas sejam assim mesmo (em um círculo vicioso tão bem fechado que quase ninguém se dá conta disso).
Estando as coisas postas assim – e uma vez postas, a lei da inércia as faz imóveis até que se as empurre com muita força - pode acontecer, por exemplo, que algum pesquisador menos bem informado - nem tanto sobre as obras e os documentos e sim sobre como e o que se “deve” pensar (ou melhor, sobre o que se considera lícito pensar) -, decida pesquisar novamente os fatos: as obras arquitetônicas concretas, suas datas de projeto e obra, suas características peculiares, etc. Digamos – hipoteticamente – que esse pesquisador perceba que, seja no norte, seja no sul, arquiteturas que poderiam ser chamadas de modernas ocorrem mais ou menos ao mesmo tempo, com diferenças de menos de meia década em muitos casos, em datas portanto muito próximas; eventualmente, até poderá encontrar obras, ditas modernas, e com datas anteriores àquelas dos supostos pioneiros do norte. E pode até mesmo achar uma quantidade tal de “exceções” que, com esses fatos na mão, pode vir a duvidar que as coisas tenham acontecido conforme afirmam tais historiografias; e que quem sabe, seria o caso de revisá-las.
Entretanto, tal pesquisador/a hipotético descobrirá rapidinho que é difícil – muito difícil – convencer seus pares de que, o que tem em mãos, é algo mais que um punhado de anomalias. Se duvidará de seu trabalho, se acusará de distorção ou de erro; se isso não for suficiente, se acusará de nomes feios (nacionalista, regionalista, chauvinista, etc.); e se desconsiderará suas dúvidas, seus fatos e suas construções teóricas pelo simples motivo de que “as coisas não podem ter acontecido como aconteceram” - pois estão impedidas a isso pela construção teórica prevalente. Nascida talvez de outros fatos; mas para a qual foi outorgada validade universal - por extensão, por costume e por preguiça.
Trata-se, é claro, de um caso hipotético: nada desse tipo jamais ocorreu entre nós - especialmente se estivermos lidando com obras da chamada primeira modernidade, ou seja, nas décadas de 1920-1945. Ou melhor: claro que aconteceu e acontece; evidente que vários autores já toparam com essa situação e trataram desse tema. Mas sua contribuição, se for relutantemente aceita, tenderá a ser classificada, na melhor das hipóteses, como um evento episódico, uma distorção pontual, um caso menor e menos significativo, considerando-se o conjunto, etc. Nem mesmo o acúmulo de estudos de tal tipo parece ser suficiente para romper facilmente essa barreira. E talvez esses casos sejam mesmo anômalos – mas talvez, não sejam. E a documentação por si só é insuficiente para demonstrar o ponto – se não for acompanhada de novas perguntas, outras reflexões, e do questionamento das construções teóricas vigentes.
O assunto fica ainda mais tenso quando se trata de interpretar os fatos da arquitetura moderna correspondentes às décadas seguintes - ou seja, 1945-1975.
Apesar da mudança de fase e de décadas, a ideia de transposição cultural – que seguramente tem seu valor na compreensão, análise e estudo do momento da chamada primeira modernidade – foi-se entranhando de tal maneira nos estudos historiográficos tratando da arquitetura do século 20 que de alguma maneira se cristalizou e se instalou, passando a ser indiscriminadamente adotada, sem maior exame, inclusive de ali em diante. Mas é mantida nem tanto porque os novos fatos também a chamam à arena, mas quase sempre apenas por inércia: de fato, não segue sendo empregada graças a um exame aprofundado e bem fundamentado dos fatos – que ao contrario, se examinados fossem, a caducariam. Por inércia, torna-se um dispositivo, ou uma ferramenta, ou uma ideia prevalente de segundo grau: um “a priori”. E assim, sem muito os pesquisadores se darem conta, seguem adotando-a como base para interpretar também as obras pós 1945 e suas relações com aquele imaginário eixo norte-sul. O qual, idem idem, segue-se acreditando existir, e seguir “norteando-nos” a todos, e funcionando sempre com mão de direção de lá pra cá, aparentemente ainda apto para a compreensão das chamadas segundas modernidades. Tal ferramenta – a transposição cultural – é extraída das fronteiras temporais nas quais parecia ter certa pertinência (no máximo, antes da 2ª Guerra), e se a faz sobreviver mais além de sua data de criação e validade. Transborda-se, assumindo um papel de não lhe compete: o de instrumento canônico e inquestionável, que segue sendo invocado porque sim, mesmo quando sua prevalência e utilidade se mostram cada vez menos defensáveis e cada vez mais indevidas; e se aplica, de cima abaixo, por sobre as modernidades destas outras décadas, e é claro, destes outros lugares.
Imaginemos então que aquele tal hipotético e intrometido pesquisador/a volte à cena e se ponha a constatar, com base nos fatos – no estudo dos documentos, das obras e projetos, das duas datas de projeto e construção, das suas características - as arquiteturas projetadas e construídas nos anos 1945-75. Digamos que os documentos, e principalmente suas datas, sugiram não caber no caso sugerir simplesmente a existência de uma mera ”transposição cultural”, nem muito menos indiquem a prevalência do ponto cardinal norte no eixo imaginário dos caminhos do sul. Pode haver, e há, influências; mas seu desenho é de rede, teia e nuvem, e não de eixo com sentido único.
Mesmo assim, vai continuar sendo difícil – muito difícil – fazer crer aos seus pares que pode haver algo de podre na percepção simplificadora e “transpositora” como base de explicação, de validade universal, para o que ocorre nos reinos ao sul da Dinamarca nessas modernidades pós 1945. Claro, poderíamos sugerir de novo que esse tal pesquisador/a é hipotético – mas neste caso, e considerando-se tudo o que tem sido estudado e publicado nem que seja apenas no âmbito do Docomomo brasileiro, nem eu nem vocês podemos em sã consciência acreditar mais nisso. E no entanto, eppur non si muove.
Por muitas e boas razões se aceitam as datas de 1920-1945 para definir o momento de origem e de definição “da” modernidade arquitetônica do século 20. Tal afirmação, mesmo se aceita e aplicada, não nasceu espontaneamente: tem origem circunstanciada e limitada, foi deduzida, bem ou mal, da análise de algumas obras modernas - mas não de todas. Entretanto, os historiadores que a corroboram não se pejam em imediatamente universalizá-la, por efeito da síndrome do umbigo do rei (que dita que um cidadão de um lugar que se crê central tende a crer que o que pensa é compartilhado pelo universo).
Dessa definição se desdobra outro corolário: que o que vem depois de 1945 seguirá sendo sempre, necessariamente e apenas um desdobramento; mais do mesmo; consolidação de pautas já claras e definidas, estabelecidas e plenamente conformadas. E se por acaso os fatos arquitetônicos desse outro momento “que se segue” não permitam, por sua natureza documental, ser claramente incluídos nessa “continuidade”, a solução para explicar tal aparente paradoxo é considerar esses outros fatos com sinal negativo: como distorção, deturpação, desvio e perda de um “verdadeiro” sentido; esse sim original, de uma vez e para sempre fundado e estabelecido; e é claro, pertencendo a outro tempo e a outro lugar, que não é aqui (nem pode ser, por efeito dos axiomas anteriores).
Pois bem: volta à ação nosso incauto hipotético e abusado personagem pesquisador/a e resolve perguntar, pensar e demonstrar – com base na documentação disponível - outras possibilidades de interpretação que lhe parecem ser mais plausíveis e conformes com os fatos, abrindo outras possibilidades para se compreender tais fenômenos.
De novo, será difícil que seus pares aceitem o que tem a dizer, e/ou que compreendam, na devida extensão e plenitude, as alternativas de interpretação que estiver propondo. Não bastam os fatos: as teorias e interpretações historiográficas vigentes que “regulamentam” o campo tenderão a seguir impávidas, sem dobrar-se facilmente à constatação de quaisquer fatos “novos” que ponham em risco a sua validade. Não exatamente elas, mas o campo que elas desenham e determinam, onde repercutem e por onde afetam a todos os demais. Novas interpretações baseadas no reexame da documentação – que podem parecer atos inocentes – de fato tendem a produzem importantes fissuras, que até certo ponto podem ser apenas absorvidas pelo campo; até se admitir que de fato se trata de um terremoto – coisa muito mais penosa e complicada.
E assim, as arquiteturas modernas situadas em outros sítios geográficos, que se tenham historicamente estabelecido nas décadas “depois”, seguem sendo constrangidas a serem lidas e interpretadas, sempre e necessariamente, como atrasadas, como influenciadas em mão de direção única (de lá pra cá), como posteriores e secundárias, mesmo quando não forem. E possivelmente sobre elas se aplicará também o primeiro axioma: serão consideradas (porque estão depois e alhures), fatos necessariamente nascidos da “transposição cultural”. Se trata, como já foi dito, de um círculo vicioso; e os perdedores somos sempre os que estamos neste outro ponto cardeal.
Por sorte, vivemos em uma época onde é possível a admissão da variedade e da complexidade. Passamos a valorizar as aberturas a outras possíveis abordagens. Vivemos a admissão da pluralidade; podemos abrir e variar.
Mas na maioria dos casos, abrir e variar não é necessariamente questionar: pode ser apenas (ou querer ser apenas) contribuir educadamente, sem por em risco o status quo. Permitem-se aberturas, claro - mas sempre quando se limitem a ser superficiais e epidérmicas. Podem se pensar outras coisas, claro – sempre quando não se chegue a provocar nenhuma convulsão importante. A diversidade bem comportada está admitida, e ademais, gosta de sua posição secundária, porque aspira ser aceita pela hierarquia vigente; e é bem-vinda por esta porque é politicamente correta. É permissível porque refresca a arena com novos temas e pautas e sugere que o campo é livre, até porque está sendo enriquecido com outras visões geográfico-culturais. Sempre quando, é claro, aceitem seu papel de alteridade admissível, à qual não cabe enfrentar de maneira demasiado dura o que ali já está, repousado e se supondo bem estabelecido. Podemos, nos permitem – mas só se soubermos encontrar nosso lugar próprio. Que será preferencialmente à margem, de maneira a não colocar em dúvida o núcleo mesmo das “verdades” fundantes vigentes (que já perderam a memória de terem sido e de seguirem sendo apenas meias verdades) e das teorias vigentes (que por inércia e abuso da autoridade se deixam perpetuar).
E entretanto, ampliar o campo talvez possa ser mais do que permitir ao “outro” seu lugar periférico. Talvez seja, perigosamente, por em dúvida a existência de um centro, de onde supostamente emanariam e de onde supostamente se comandariam, antes e sempre, as polaridades. E para superá-la talvez não seja necessário substituir esse centro por outro, mas apenas admitir a pluralidade de maneira menos preconceituosa, e mais ampla.
Estas considerações seriam apenas exercícios sobre o nada se não fosse porque, se bem elas aqui se apresentam de maneira abstrata, de fato nasceram de situações bem concretas. E são reflexões que tomam por base algo aparentemente básico e inofensivo: a documentação. E que percebem o seu potencial de transformação do campo - sempre quando o olhar que sobre elas pousar se permita fazer novas perguntas e não aceitar ideias prontas que não passem pelo crivo da razão – e mais que isso, dos fatos. São ideias que nasceram da cuidada e demorada apreciação dos nossos mais densos documentos: os projetos e as obras; e da verificação acurada das suas datas. Parece pouco, mas não é.
Enquanto a pesquisa se limita a constatar, parece inofensiva. Quando se propõe a analisar e comparar documentos - inclusive obras - de quaisquer partes do mundo, considerando-as todas, a princípio, no mesmo pé de igualdade (ou seja, sempre como documentos, e não a partir do filtro de explicações ideológicas e/ou historiográficas nelas incrustadas a priori) pode acontecer que a pesquisa perceba e revele outras coisas, muito distintas. E pode acontecer – e acontece – que inviabilizem, entre outras ferramentas, a ideia da “transposição cultural”; pois esta tende sempre a empanar o olhar, a impedir que quem estude os documentos encontre outra coisa que não uma continuidade posterior, ou a polaridade, ou o atraso, etc. Mas caso se supere essa barreira, as demais caem muito facilmente: os documentos, se examinados em sua própria natureza, não só validam como veementemente sugerem miradas distintas.
Os mesmos fatos – os documentos -, se vistos de outros ângulos, podem dar lugar a outras premissas e a distintas consequências. Que finalmente, talvez possam chegar a ter certo potencial para minar, nem que seja em parte, o que já parece estar bem sentado e estabelecido. E talvez por isso mesmo essas interpretações, nascidas da reflexão sobre a documentação, tem dificuldade em se tornar criveis: não porque não sejam plausíveis, mas porque estão sob a sombra ocultadora das construções teóricas prévias, que sem nos darmos muita conta disso, estão empatando o campo.[2]
[1] WAISMAN, Marina. El interior de La historia. Historiografia arquitectónica para uso de Latinoamericanos. Bogotá: Escala, 1990. p.35.]
[2] Uma versão parcial deste texto foi apresentada no Seminário Internacional “Puntos Cardinales de la Teoría de La arquitectura 1920-1950” e publicada nos seus anais (Universidad Nacional de Rosário, 2011). O debate crítico que se seguiu à sua exposição foi muito intenso e rico, e sem dúvida colaborou para a revisão e precisão do presente texto.]